Pai contra mãe: caçar escravo fugido é coisa de vagabundo
- Bruno Jarotzky Neto
- 24 de out. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 30 de out. de 2024
Traiu ou não traiu? Qualquer adolescente brasileiro saberia identificar a origem desta ambiguidade partindo do princípio de que teria uma educação razoável em seu ensino médio. Mas não é desta obra (Dom Casmurro, de Machado de Assis) que contém a ambiguidade que me aflige, de fato, na literatura clássica nacional. Eu falo de poucas páginas que compõem algo que daria uma novela célebre, da qual suas tias fofoqueiras reservariam o nome de um personagem repugnante para que consigam explorar seu potencial de ofensa a quem lhes chateia.
Pai contra mãe, de Machado de Assis, possui Cândido Neves como protagonista, mas isto é discutível, e entenderão mais ao final por que digo isto.
"Preto fugido sabe que comigo não brinca [...]" - Cândido Neves
Cândido Neves, neste conto, é um capitão do mato. É interessante neste conto que Machado de Assis deixa bem claro sua opinião sobre esta profissão quando descreve o interesse de Cândido na caçada de escravo fugido em detrimento de seu desinteresse em prestar serviços a patrões ou conquistar clientes com um ofício artesanal. Coloquialmente falando, é coisa de vagabundo.
Mais adiante, descrevendo a instabilidade profissional e financeira do personagem, com a escassez de serviços, nota-se também as implicações do sistema capitalista através de problemas diretamente relacionados ao desamparo social, fome e moradia indigna. Cândido possui uma esposa que deu à luz a um menino e mora de aluguel.
Sem me preocupar em me aprofundar mais nestes detalhes, digo que o homem tinha um encanto em caçar escravos fugidos. Em uma clara indisposição ao ofício que visava servir e produzir, encontrava seu conforto na sensação de alta moralidade que tomava conta de seu discurso enquanto em sua caçada.
Para sua alegria, sadismo e sorte, encontrara uma 'mulata' que fugiu de seu dono, chamada Arminda, em uma perseguição na qual deixou seu filho de colo dentro de uma farmácia com um desconhecido para que conseguisse alcançá-la. É claro que ela se humilhou e se ofereceu de escrava para que não lhe entregasse ao seu senhor, alegando que ele era um homem muito mal.
"Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois?" perguntou Cândido Neves
O capitão do mato expressava satisfação moral em apanhar a mãe que carregava um filho em seu ventre, eis a mãe a qual sem dúvida alguma o autor referenciou no título de seu conto. Lembra-se que lá no início escrevi que um dos elementos geniais de Machado de Assis era a ambiguidade de suas histórias? Lembra que seria discutível a interpretação na qual Cândido era o protagonista? É claro, ele tinha um filho, tinha que alimentá-lo e com isso enfrentou uma escrava fugida que também seria uma mãe. Ao entregá-la ao dono, a cena foi hedionda, o que me fez refletir e tornou-se ainda mais hedionda à medida que eu refletia sobre esta narrativa.
"No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou. O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono"
Repare que houve uma luta e que o dono estava desesperado. Não está escrito explicitamente, mas está claro o elemento da ambiguidade e seu uso genial por Machado de Assis. O uso da palavra "luta" neste trecho não é por acaso e o dono estava desesperado por um motivo, afinal de contas, ela provavelmente não engravidou sozinha. Pai contra a mãe é um conto muito mais profundo do que qualquer um de nós possa imaginar. Após a luta, Cândido Neves retorna à farmácia para buscar seu filho.
Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto. --Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.
Mais uma vez a ambiguidade genial de Machado de Assis. Um pai que ama seu filho o beija entre lágrimas verdadeiras, é interessante se colocar o contraponto de um homem que ama com sinceridade a seu filho e que talvez estaria referenciado como sendo o 'Pai' no título, coisa que, é claro, me trouxe dúvidas. Maldita minha consciência que não me conduz à loucura enquanto naturalmente me faz pensar que um pai seria capaz de matar o próprio filho dentro do ventre de uma mãe desamparada em todas as dimensões de sua vida.
Na minha leitura, a ambiguidade deste conto está em quem seria o "Pai", mas mãe tinha nome: Arminda.
Me caro, de fato é impossível não se contorcer ao ler pela primeira vez tal conto e se deparar com seu desfecho horrendo. Devo admitir que sua meditação sobre ele me fez sentir essa aflição duas vezes mais. Ao concluir a leitura me peguei pensando o quanto nós como sociedade temos traído as tradições de nossos pais em nome de um cumprimento do dever falso, por vezes maligno que se perpetrou em nossas mentes nos últimos anos em nome do bem estar social. Em consequência disso não é difícil se perguntar: o quanto temos sacrificado para fazer parte desse mundo vaidoso e decadente? pensemos além de quem deixamos morrer, mas pensemos (o que temos deixado morrer em nós mesmos).
PS:…
Parabéns Bruno!! Excelente interpretação e colocação. Sucesso no blog 😘🙌